Espuma dos dias — Como a Europa foi posta de joelhos: comércio equilibrado ou mercantilismo? Por Heiner Flassbeck

Seleção e tradução de Francisco Tavares

3 min de leitura

Como a Europa foi posta de joelhos: comércio equilibrado ou mercantilismo?

Por Heiner Flassbeck

 Publicado por   em 6 de Agosto de 2025 (original aqui)

 

Muitos estão surpreendidos com o facto de a Comissão da UE ter conseguido tão pouco nas suas conversações comerciais com os EUA. As pessoas em todos os lugares reclamam que a UE deveria ter sido mais corajosa e ameaçado contramedidas. Como pode ter sido permitido que os americanos impusessem tarifas e os europeus simplesmente não fizessem nada? Os europeus são apenas cobardes?

Quem pensa assim nada sabe sobre comércio internacional e julga como se ambas as partes se encontrassem simplesmente em igualdade de condições. No entanto, isso não se deve apenas ao poder absoluto dos americanos, mas também à lógica da questão. Basta comparar os dois documentos publicados por ambas as partes para ver isso. A palavra mágica é ‘comércio equilibrado’. O documento de informação estado-unidense afirma: ‘Os Estados Unidos e a União Europeia celebraram um acordo de cooperação em matéria de comércio recíproco, justo e equilibrado.’

O contra-documento europeu afirma: ‘em 27 de julho de 2025, a Presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, e o Presidente dos EUA, Donald J. Trump, concordaram com um acordo sobre tarifas e comércio. Não há qualquer referência a um comércio equilibrado e justo. Dado que a discrepância entre os documentos é tão óbvia, posso dizer-lhe exactamente como foram as negociações. Eu não estava lá, mas a lógica diz-nos como deve ter sido.

A delegação americana entra na sala de negociações e coloca uma imagem na parede que mostra os saldos das contas correntes dos EUA e da Europa. Os EUA têm enormes défices, a Europa tem grandes excedentes. O negociador americano diz: é muito simples: nós temos défices, vocês têm excedentes. Queremos um comércio equilibrado (ele utiliza exactamente as palavras ‘comércio equilibrado’), mas vocês o que é que querem?

Ursula von der Leyen olha para as suas notas de leitura, mas não consegue encontrar uma resposta. Sim, o que querem os europeus? Deveria ela dizer agora que os europeus querem ter excedentes durante mais cem anos? O que se pode dizer contra o ‘comércio equilibrado’? Não estão os próprios europeus a tentar alcançar um comércio equilibrado dentro da União Monetária? Não existem até procedimentos e acusações contra países que têm consistentemente excedentes excessivos? Talvez os americanos saibam disso.

Antes que a Presidente da Comissão possa abrir a boca, a americana diz: como pessoas inteligentes e bons economistas, estamos seguramente de acordo que o mercantilismo, a tentativa dos países e das regiões de se enriquecerem através de excedentes comerciais permanentes à custa dos seus parceiros comerciais, pertence ao caixote do lixo da história. Sabemos disso há 300 anos. Isso golpeia-nos

A Presidente da Comissão ainda não disse uma palavra, mas agora ela recompõe-se e gagueja: ‘mas, por favor, não 30%. 15% não é mau se fizermos um esforço para acomodar nossos amigos americanos em outras áreas’. Tudo bem’, diz o americano, ‘digamos 15%, algumas centenas de bilhões em investimentos diretos, algumas centenas de bilhões a mais em importações de energia, e temos um acordo feito.’

A Presidente da Comissão agradece-lhe educadamente este gesto generoso entre amigos e pede-lhe que transmita os seus melhores votos ao querido Donald. Os americanos saem da sala, sorrindo e dizendo que nunca foi tão fácil deixar os europeus sem palavras.

Receio que, mesmo depois desta lição, a maioria dos europeus ainda não compreenda àquilo a que se chegou. Eles pensam que mercantilismo é uma palavra usada para insultar aqueles que se opõem ao livre comércio. Mas a posição dos EUA é válida: só um comércio equilibrado pode ser um comércio justo. Os excedentes são, sem dúvida, os culpados.

Aliás, a presidente da Suíça saiu-se tão mal como a presidente da Comissão. Ela também acreditava que estava bem preparada para um telefonema com Donald Trump e ele virou-lhe as costas. Os europeus, na sua mania dos excedentes, não compreendem que não têm argumentos contra a acusação americana de mercantilismo. Não se pode simplesmente enfrentar um parceiro poderoso e dizer: Queremos excedentes porque sempre tivemos excedentes.

Para evitar as tarifas, os países excedentários deveriam ter unido forças e oferecido aos americanos uma forma de reduzir os excedentes de uma forma que seria positiva para ambas as partes, nomeadamente através de um maior crescimento nos países excedentários (como se mostra aqui). No entanto, todas as administrações envolvidas carecem claramente dos conhecimentos económicos necessários para desenvolver essa estratégia.

 

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O autor: Heiner Flassbeck [1950 – ], economista alemão (1976 pela Universidade de Saarland), foi assistente do Professor Wolfgang Stützel em questões monetárias. Doutorado em Economia pela Universidade Livre de Berlim em julho de 1987. Em 2005 foi nomeado professor honorário na Universidade de Hamburgo. Foi secretário de estado (vice-ministro) do Ministério Federal de Finanças de outubro de 1998 a abril de 1999 sendo Ministro das Finanças Oskar Lafontaine (primeiro governo Schröeder), e era responsável pelos assuntos internacionais, a UE e o FMI.

Trabalhou na UNCTAD- Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento desde 2000, onde foi Diretor da Divisão de Globalização e Estratégias de Desenvolvimento de 2003 a dezembro de 2012. Desde janeiro de 2013 é Diretor de Flassbeck-Economics, uma consultora de assuntos de macroeconomia mundial (www.flassbeck-economics.com). Colaborador de Makroskop. Autor de numerosas obras e publicações, é co-autor do manifesto mundial sobre política económica ACT NOW! publicado em 2013 na Alemanha, e são conhecidas as suas posições sobre a crise da eurozona e as suas avaliações críticas sobre as políticas prosseguidas pela UE/Troika, nomeadamente defendendo que o fraco crescimento e o desemprego massivo não são resultado do progresso tecnológico, da globalização ou de elevados salários, mas sim da falta de uma política dirigida à procura (vd. The End of Mass Unemployment, 2007, em co-autoria com Frederike Spiecker).

 

 

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